domingo, 22 de março de 2009

Na Ilha Terceira a qualidade primeiro

Manuel Serrão
18.Março.2009|Opinião|Jornal de Notícias


Na Ilha Terceira, a qualidade de vida está primeiro. Penso que do título era fácil retirar esta conclusão, mas a restrição do número de caracteres obriga-me a começar com este esclarecimento.

Fui passar o último fim-de-semana à Ilha Terceira, fazendo desse modo a minha estreia nos Açores. Digo isto com prazer, agora que fui, mas também com vergonha e muita pena por não ter ido antes.

Desta escapadela rápida que procurarei redimir com uma visita mais alargada num futuro breve, colhi vários ensinamentos e lições de vida que, combinados com desgraças recentes no continente europeu, me impelem para conclusões que vou honestamente tentar partilhar com os leitores do JN.

"Ó tempo volta para trás, traz-me tudo o que eu perdi, tem pena e dá-me a vida, a vida que eu já vivi," era assim que cantava António Mourão.

Sem saudosismos estéreis seria isto que me apetecia cantar depois de um fim-de-semana de absoluta paz no meio do intenso verde da Ilha Terceira. Com muito maior razão de ser tenho a certeza de que era isto que gostava que acontecesse o pai que se esqueceu da criança que morreu dentro de um carro, em Aveiro. Entre a música antiga de António Mourão e a qualidade de vida possível dos tempos que correm pode existir um meio-termo cujo fio condutor eu penso ter reencontrado na Ilha Terceira.

É evidente que somos todos pais e filhos do estilo de vida frenético e competitivo que hoje pauta os nossos dias. Também ninguém duvida de que não é fácil encontrar um ponto de equilíbrio perfeito entre a realização pessoal, o sucesso profissional e a qualidade e harmonia da vida familiar. Mas é bom que também ninguém duvide de que há sinais exteriores de alerta que não devemos desprezar, nomeadamente quando é a vida humana, mais do que a sua própria qualidade, que começa a ser posta em causa.

É muito fácil apontar o dedo acusador ao jovem pai aveirense e tentar pôr uma pedra sobre o assunto promovendo a sua acusação por homicídio negligente. Se essa solução fosse justa e suficiente, estaríamos perante um caso, como acontece noutras situações, em que há um comportamento desviante de um indivíduo que a sociedade pune, sem ter de assumir qualquer culpa. Na verdade, parece-me que a situação é bem mais complexa. Se o comportamento do indivíduo não pode neste caso ser desculpado, a verdade é que a sociedade se deve sentir obrigada a reflectir o grau de culpabilidade que lhe é assacável.

É evidente que nenhum pai que se preze se pode esquecer no carro de um filho de nove meses que se comprometeu a levar ao infantário. Mas não é menos verdade que há outros factores que é preciso ponderar, antes de emitir o juízo final sobre este lamentável caso. Desde logo a aceleração da vida quotidiana (que as novas tecnologias ainda incrementam) e que permite que alguém que foi pai há nove meses se esqueça em poucos minutos de uma criança que tem no banco de trás do carro, só porque tem de falar ao telemóvel antes de chegar ao trabalho, ou porque tem assuntos de trabalho que não podem esperar um minuto.

Esta nova vida em sociedade, que junta um pai e uma mãe com a mesma ambição e o mesmo stress profissional, pode não garantir o melhor ambiente e as melhores condições de desenvolvimento para os filhos que gera. Se é triste que uma criança possa morrer no banco de trás de um carro, esquecida pelo progenitor, também não é animador que ela possa sobreviver a esse esquecimento, chegando aos 17 anos com vontade de disparar sobre tudo o que a rodeia, como também este mês foi notícia no país mais desenvolvido da União Europeia.

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